Três perguntas para Pedro Brum sobre Caldre e Fião
Já postamos um texto sobre o pionerismo do escritor Caldre e Fião, um autor não muito lembrado mas de grande relevância para a literatura nacional. Hoje, na seção Salvo do Esquecimento, apresentamos uma entrevista que realizamos com o professor Dr. Pedro Brum. Pesquisador da UFSM (Universidade Federal de Santa Maria), na área de literatura e história, Brum possui um estudo dedicado ao escritor porto-alegrense. Recorremos a ele para saber mais sobre o legado de Fião e a importância de sua obra hoje.
CLL - Qual é a importância da contribuição de
Caldre e Fião para a literatura nacional e gaúcha? Por que, ao contrário de
Joaquim Manuel de Macedo, ele não é tão lembrado?

Como
é freqüente na crítica e na historiografia literárias, as posições iniciais se
cristalizam. Assim, quando verificamos as leituras feitas ao longo do
novecentos sobre o cânone de nosso romantismo, o extremo Sul normalmente fica
de fora. Caldre e Fião, cuja ligação com
o abolicionismo parece ter sido um motivo forte para mantê-lo fora do cânone em
formação, passada a fase do Rio de Janeiro, ainda incentivaria os jovens que,
em 1868, fundaram em
Porto Alegre o Partenon Literário. Já completamente devotado
às atividades da medicina, aceitou de bom grado a função de patrono da
agremiação lítero-cultural. Porém, essas veleidades do mundo da arte não
tiraram a primazia absoluta que continuou votando a seu trabalho de médico
comunitário, profissão que, conforme relatos de contemporâneos, rendeu-lhe uma
existência modesta até o final da vida em 1876. Em sua biografia, que registra
muitos lapsos de informação, nada indica que tenha retomado, uma vez sequer, a
verve de ficcionista. Do mesmo modo, nunca teria reivindicado qualquer glória,
mesmo quando os temas literários de que se ocupou no período da Corte
apareceram reforçados na pena de Alencar e fizeram efervescer a geração do
Partenon. Por essa ocasião, parece tranqüilamente convencido de que as causas
sociais podem mais que as literárias.
CLL - Caldre Fião era popular e bastante lido em sua época? Com quem ele possui
mais afinidade literária?

Já no campo das afinidades, a aproximação com
Alencar é a mais evidente. A começar pelo próprio fato de que as primícias do
autor gaúcho ajudam a entender o poderoso papel de catalisador que o criador de
O guarani ocupa na literatura do
nascente Estado brasileiro. Se em Caldre e Fião verificamos pioneirismo, é sempre
em Alencar que encontramos a constante e aguda percepção da oportunidade de
temas e situações. Para ficarmos na questão rio-grandense, lembremos que muito
antes de O gaúcho, A divina pastora elege o motivo da
guerra e da violência como apelos definidores do caráter humano predominante do
extremo meridional do Brasil. A Revolução Farroupilha, porém, havia acabado há
apenas dois anos quando saiu o romance do sulista, razão pela qual, os
protagonistas de Caldre e Fião, justificadamente, a vêem com desconfiança.
Por
outro ângulo, um exame mais acurado permite supor que a obra de Alencar, há
muito, flertava com temas e situações que abundam nos textos do pioneiro autor
rio-grandense. Há, por exemplo, semelhanças evidentes entre Loredano, vilão de O guarani (1857) e Vanzini, protagonista
de O Corsário – que, a exemplo de A divina pastora, recebera bastante
publicidade na Corte. Neste segundo romance do autor sulino, Giuseppe Vanzine é
um aventureiro que, após farsas e saques em sua terra natal, dera na costa rio-grandense,
onde, como sobrevivente de um naufrágio, fruto da astúcia e do logro, continua
sua existência errante, à qual não faltam a lubricidade diante das donzelas
inocentes e a esperteza frente a almas ingênuas da província. Assim como este
Vanzini de Caldre e Fião, o Loredano de Alencar esconde um passado obscuro, que
somente aos poucos vai se deixando revelar na narrativa. Ambos possuem origem
italiana, inclinações violentas, ganância excessiva. Ao que parece, a possível
leitura de Caldre e Fião teria instigado Alencar a escolher um vilão italiano à
moda inglesa para arquitetar o núcleo da intriga de O guarani, obra que lançou sua proposta daquilo que julgava
necessário para uma verdadeira renovação da literatura brasileira. Alencar, ao
que tudo indica, percebeu nessa figura um tipo à altura para desafiar
portugueses e índios e fazer-lhes dar mostras de coragem e altivez moral. Loredano,
à semelhança de Vanzini, é um tipo que parece dotado de poderes infernais. Seus
feitos, muitas vezes, desafiam as leis da probabilidade e se colocam além da
compreensão racional, indicando suas origens literárias que vêm do romance
gótico. Não é absurdo, portanto, que protagonize cenas fantasmagóricas, cujos
indícios se repetem fartamente no relato com o objetivo de reforçar a
malevolência do vilão. Alencar, a exemplo de Caldre e Fião, parece apostar no
estereótipo do vilão italiano à moda inglesa – e esta é uma coincidência significativa,
especialmente quando se sabe que o tipo não é comum nas tramas brasileiras da
época, muito mais interessadas em conjuntos de complicações destinadas a porem
amantes à prova e ilustrarem o triunfo da virtude.
De outra parte, quem leu A divina pastora e conhece Almenio, sua
nobreza de alma, a região serrana por onde circula preferencialmente, sua
destreza com a montaria, não estranha Manoel Canho, o gaúcho de Alencar, mesmo
reconhecendo que, neste último, é acrescida a genealogia de Bento Gonçalves, a
esta altura já com foro de herói, e que seus passos ressaltam, mais que no
antecessor, as variações do meio físico rio-grandense.
Essas
aproximações demonstram, na verdade, o quanto Caldre e Fião soube incorporar em
sua nascente obra aqueles aspectos que, oriundos da pátria comum do romantismo,
solidificaram a fonte dos tantos afluentes por onde navegou a ficção do tempo.
CLL - Quais são as características mais salientes do autor?
Pedro Brum - Caldre e Fião, além de figurar entre os primeiros romancistas brasileiros, explorou temas e motivos que mostram sua perfeita sintonia com os de sua época. Basta compará-lo, como fizemos, a José de Alencar, o principal autor do tempo, que lhe é posterior, para verificar a existência de uma interlocução interessante entre ambos, sobretudo no que diz respeito à exploração ficcional da geografia do vasto – e desconhecido - território brasileiro.
Aí pela metade do século XIX, de fato,
tornava-se imperioso explorar a terra virgem, flagrar-lhe o aroma e, na medida
do possível, compreender-lhe as idiossincrasias. Esses, como sabemos, eram
gestos caros à ânsia romântica em voga, que propalava um fervor místico à
natureza e à glorificação dos valores pátrios.
Caldre e Fião deixara a terra natal para
completar estudos na Corte, onde publicou, num curto espaço de tempo, tudo que
se conhece de sua prosa de ficção. Em dois romances e alguns folhetins, colocou
em cena escaramuças de guerras, donzelas, salteadores e mocinhos, tendo como
cenário típico e preferencial planaltos e escarpados rio-grandenses.
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