Três perguntas para Pedro Brum sobre Caldre e Fião

Já postamos um texto sobre o pionerismo do escritor Caldre e Fião, um autor não muito lembrado mas de grande relevância para a literatura nacional. Hoje, na seção Salvo do Esquecimento, apresentamos uma entrevista que realizamos com o professor Dr. Pedro Brum.  Pesquisador da UFSM (Universidade Federal de Santa Maria), na área de literatura e história, Brum possui um estudo dedicado ao escritor porto-alegrense. Recorremos a ele para saber mais sobre o legado de Fião e a importância de sua obra hoje.

CLL -  Qual é a importância da contribuição de Caldre e Fião para a literatura nacional e gaúcha? Por que, ao contrário de Joaquim Manuel de Macedo, ele não é tão lembrado?

Pedro Brum - É estranho o silêncio que ainda hoje a historiografia devota ao pioneirismo de Caldre e Fião. Além de ter sido o primeiro ficcionista que publicou, em prosa de ficção, matéria de cunho regionalista na Corte, numa época em que a própria noção de região ainda não fora configurada, também está entre os primeiros romancistas brasileiros. Nenhum dos fatos, porém, foi suficiente para tirá-lo do apagamento, cujas raízes, ao que tudo indica, remontam ao próprio século XIX, pois uma visada sobre os oitocentos nos ajuda a entender a extensão do problema. Ali, entre as poucas fontes que devotam interesse por registros ligados à porção mais meridional do território brasileiro, está o Dicionário bibliográfico português, de Inocêncio Francisco da Silva, onde, aliás, encontramos detalhes sobre o livro de estreia de Caldre e Fião. Tirando essa referência e o material que se pode coligir em jornais fluminenses contemporâneos ao período em que as obras foram lançadas, não há nenhum outro registro de vulto. O autor de A divina pastora, enfim, cai no mesmo limbo que foi devotado a temas rio-grandenses na crítica e historiografia do dezenove.
Como é freqüente na crítica e na historiografia literárias, as posições iniciais se cristalizam. Assim, quando verificamos as leituras feitas ao longo do novecentos sobre o cânone de nosso romantismo, o extremo Sul normalmente fica de fora. Caldre e Fião, cuja ligação com o abolicionismo parece ter sido um motivo forte para mantê-lo fora do cânone em formação, passada a fase do Rio de Janeiro, ainda incentivaria os jovens que, em 1868, fundaram em Porto Alegre o Partenon Literário. Já completamente devotado às atividades da medicina, aceitou de bom grado a função de patrono da agremiação lítero-cultural. Porém, essas veleidades do mundo da arte não tiraram a primazia absoluta que continuou votando a seu trabalho de médico comunitário, profissão que, conforme relatos de contemporâneos, rendeu-lhe uma existência modesta até o final da vida em 1876. Em sua biografia, que registra muitos lapsos de informação, nada indica que tenha retomado, uma vez sequer, a verve de ficcionista. Do mesmo modo, nunca teria reivindicado qualquer glória, mesmo quando os temas literários de que se ocupou no período da Corte apareceram reforçados na pena de Alencar e fizeram efervescer a geração do Partenon. Por essa ocasião, parece tranqüilamente convencido de que as causas sociais podem mais que as literárias.

CLL - Caldre Fião era popular e bastante lido em sua época? Com quem ele possui mais afinidade literária?

Pedro Brum - Enquanto esteve na Corte, o jovem médico publicara dois romances: A divina pastora, novela rio-grandense (1847) e O corsário, romance rio-grandensse (1851). A esses teriam se somando, pelo menos dois títulos em folhetins, além de teses sobre medicina e elogios dramáticos ao príncipe Dom Pedro e ao ator João Caetano. É inegável que essa atividade de escritor o tornou bastante conhecido entre os círculos cultos do Rio de Janeiro, embora, ao que parece, seus títulos tenham sido logo “abafados” pelos nomes românticos que gravitavam em torno dos poderosos da época. Nesta fase também se envolve com o abolicionismo. Chegou a dirigir o periódico O Filantropo. Posteriormente, a publicação foi encampada pela recém fundada “Sociedade contra o tráfico de africanos e promotora da colonização e civilização dos indígenas”. O autor passou, então, a colaborar em jornais abolicionistas publicados no Rio de Janeiro. Reside dessas colaborações, ao que tudo indica, suas indisposições políticas. De volta ao Sul, de acordo com Carlos Reverbel (Traços biográficos de Caldre e Fião. Posfácio de A divina pastora. Porto Alegre: RBS, 1992), teria sofrido represálias de Manoel Pinto da Fonseca, então o maior mercador de escravos do Brasil, que contava com proteção legal. Cogita-se, em função dessas animosidades, que as novelas de Caldre e Fião foram tiradas de circulação. Não é de admirar, portanto, que A divina pastora tenha sumido por 145 anos, até ser redescoberta pelo livreiro Adão Fernando Monquelat, de Pelotas, que, em 1992, localizou um exemplar em Montevidéu.
      Já no campo das afinidades, a aproximação com Alencar é a mais evidente. A começar pelo próprio fato de que as primícias do autor gaúcho ajudam a entender o poderoso papel de catalisador que o criador de O guarani ocupa na literatura do nascente Estado brasileiro. Se em Caldre e Fião verificamos pioneirismo, é sempre em Alencar que encontramos a constante e aguda percepção da oportunidade de temas e situações. Para ficarmos na questão rio-grandense, lembremos que muito antes de O gaúcho, A divina pastora elege o motivo da guerra e da violência como apelos definidores do caráter humano predominante do extremo meridional do Brasil. A Revolução Farroupilha, porém, havia acabado há apenas dois anos quando saiu o romance do sulista, razão pela qual, os protagonistas de Caldre e Fião, justificadamente, a vêem com desconfiança.
Por outro ângulo, um exame mais acurado permite supor que a obra de Alencar, há muito, flertava com temas e situações que abundam nos textos do pioneiro autor rio-grandense. Há, por exemplo, semelhanças evidentes entre Loredano, vilão de O guarani (1857) e Vanzini, protagonista de O Corsário – que, a exemplo de A divina pastora, recebera bastante publicidade na Corte. Neste segundo romance do autor sulino, Giuseppe Vanzine é um aventureiro que, após farsas e saques em sua terra natal, dera na costa rio-grandense, onde, como sobrevivente de um naufrágio, fruto da astúcia e do logro, continua sua existência errante, à qual não faltam a lubricidade diante das donzelas inocentes e a esperteza frente a almas ingênuas da província. Assim como este Vanzini de Caldre e Fião, o Loredano de Alencar esconde um passado obscuro, que somente aos poucos vai se deixando revelar na narrativa. Ambos possuem origem italiana, inclinações violentas, ganância excessiva. Ao que parece, a possível leitura de Caldre e Fião teria instigado Alencar a escolher um vilão italiano à moda inglesa para arquitetar o núcleo da intriga de O guarani, obra que lançou sua proposta daquilo que julgava necessário para uma verdadeira renovação da literatura brasileira. Alencar, ao que tudo indica, percebeu nessa figura um tipo à altura para desafiar portugueses e índios e fazer-lhes dar mostras de coragem e altivez moral. Loredano, à semelhança de Vanzini, é um tipo que parece dotado de poderes infernais. Seus feitos, muitas vezes, desafiam as leis da probabilidade e se colocam além da compreensão racional, indicando suas origens literárias que vêm do romance gótico. Não é absurdo, portanto, que protagonize cenas fantasmagóricas, cujos indícios se repetem fartamente no relato com o objetivo de reforçar a malevolência do vilão. Alencar, a exemplo de Caldre e Fião, parece apostar no estereótipo do vilão italiano à moda inglesa – e esta é uma coincidência significativa, especialmente quando se sabe que o tipo não é comum nas tramas brasileiras da época, muito mais interessadas em conjuntos de complicações destinadas a porem amantes à prova e ilustrarem o triunfo da virtude.
     De outra parte, quem leu A divina pastora e conhece Almenio, sua nobreza de alma, a região serrana por onde circula preferencialmente, sua destreza com a montaria, não estranha Manoel Canho, o gaúcho de Alencar, mesmo reconhecendo que, neste último, é acrescida a genealogia de Bento Gonçalves, a esta altura já com foro de herói, e que seus passos ressaltam, mais que no antecessor, as variações do meio físico rio-grandense.
     Essas aproximações demonstram, na verdade, o quanto Caldre e Fião soube incorporar em sua nascente obra aqueles aspectos que, oriundos da pátria comum do romantismo, solidificaram a fonte dos tantos afluentes por onde navegou a ficção do tempo.
 
CLL - Quais são as características mais salientes do autor?


Pedro Brum - Caldre e Fião, além de figurar entre os primeiros romancistas brasileiros, explorou temas e motivos que mostram sua perfeita sintonia com os de sua época. Basta compará-lo, como fizemos, a José de Alencar, o principal autor do tempo, que lhe é posterior, para verificar a existência de uma interlocução interessante entre ambos, sobretudo no que diz respeito à exploração ficcional da geografia do vasto – e desconhecido - território brasileiro.
     Aí pela metade do século XIX, de fato, tornava-se imperioso explorar a terra virgem, flagrar-lhe o aroma e, na medida do possível, compreender-lhe as idiossincrasias. Esses, como sabemos, eram gestos caros à ânsia romântica em voga, que propalava um fervor místico à natureza e à glorificação dos valores pátrios.
     Caldre e Fião deixara a terra natal para completar estudos na Corte, onde publicou, num curto espaço de tempo, tudo que se conhece de sua prosa de ficção. Em dois romances e alguns folhetins, colocou em cena escaramuças de guerras, donzelas, salteadores e mocinhos, tendo como cenário típico e preferencial planaltos e escarpados rio-grandenses.

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