Entrevista: Guilherme Braga
Se você já leu, em português, as obras As visões de Cody, Big Sur ou Anjos da Desolação, de Jack Kerouac (que completaria hoje noventa anos), então é provável que tenha conhecido, além do texto de Kerouac, o resultado final do trabalho do porto-alegrense Guilherme da Silva Braga. Tradutor formado em Letras (habilitação português-inglês) pela UFRGS, Guilherme possui diversos nomes de peso dentre os autores de livros que já traduziu, como H.P. Lovecraft, Franz Kafka e Edgar Allan Poe. A CLL conversou com ele sobre o ofício de tradutor:
Como e quando começaste tua carreira de
tradutor?
Eu lecionava
inglês em 2005 quando fiquei sabendo que a L&PM estava precisando de
tradutores. Eu não tinha muita experiência – só tinha traduzido alguns
poemas e
textos para mim mesmo, mas nada profissionalmente –, mas mesmo assim
resolvi
traduzir uns trechos do Oscar Wilde para mostrar o que sabia fazer e mandar junto com os poemas. Como
gostaram do meu trabalho, tive a oportunidade de traduzir o livro Os
seis bustos de Napoleão, com contos do
Sherlock Holmes. Traduzi, entreguei e recebi o material de volta com
algumas
críticas, o que é comum no início da carreira de tradutor. Revisei mais
uma vez
essa tradução e em seguida comecei a fazer o curso de tradução literária
ministrado pela professora Beatriz Viégas-Faria, que tinha por objetivo
acabar
com a maior dificuldade para quem pretende entrar no mercado de tradução
literária: ninguém te dá trabalho porque tu não tem experiência e tu não
tem
experiência porque ninguém te dá trabalho. Na oficina os alunos
traduziam obras
literárias – em geral contos – que a L&PM queria lançar e assim, com
a
supervisão da Beatriz, tinham a oportunidade de traduzir textos para
publicação.
Uma das obras solicitadas quando eu era aluno foi A Volta do Parafuso,
do
Henry James. Escolhi traduzir essa novela e o pessoal da editora gostou
do
resultado. A partir daí, comecei a reduzir minha carga horária como
professor de inglês e a aumentar o tempo dedicado aos trabalhos de
tradução.
Depois passei um ano letivo na Hungria com uma bolsa de estudo, e
durante
esse tempo traduzi os diários da Anaïs Nin. Quando voltei para Porto
Alegre e
vi que não tinha mais possibilidade de conciliar o tempo das aulas com o
das
traduções, me demiti para trabalhar apenas como tradutor. Foi nessa
época que o
pessoal da L&PM me ofereceu o Visões
de Cody do Jack Kerouac para traduzir, e o livro acompanhado por um
alerta de
que já tinha sido recusado por três tradutores devido às dificuldades do
texto.
Li alguns trechos com calma e resolvi encarar o desafio, e acho que foi a
partir daí que consegui me estabelecer como tradutor.
Traduzir
a prosa
de Kerouac é um desafio maior do que traduzir textos mais clássicos,
como os de
Poe ou de Conan Doyle?
É bem
diferente, na verdade. Embora a prosa mais antiga de autores como o Poe,
Lovecraft e Henry James tenha uma sintaxe super-rebuscada, com frases
que às
vezes ocupam uma página inteira, em geral o que esses autores escrevem é
produto de um pensamento claro, formulado de uma maneira articulada. No
Kerouac
não. O texto dele não tem nada de muito claro e preciso. Em muitos
casos,
aliás, fica claro que ele estava se lixando para a construção da frase.
Mas
apesar do aspecto desleixado dessa escrita, não sei se a prosa do
Kerouac era
tão livre quanto parece. Muitas vezes ele começa falando de um assunto
que o lembra
de outro assunto sobre o qual passa mais três páginas falando; esse
segundo
assunto leva a um terceiro, e umas vinte páginas mais adiante o Kerouac
retoma
o primeiro assunto como se nada tivesse se passado desde a primeira vez
em que
o menciona. Não sei se é possível fazer isso no improviso.
Vários
autores
brasileiros conhecidos, como Machado de Assis, Monteiro Lobato e Carlos
Drummond já trabalharam como tradutores. Tu tens algum tradutor
brasileiro que
te sirva de inspiração?
Logo que
comecei a traduzir, eu estava lendo o Atonement,
do Ian McEwan, e a minha namorada tinha ganhado a tradução brasileira do
livro.
Essa obra tem um trabalho muito legal em cima da linguagem. Era o tipo
de livro
que eu lia e pensava “Como é que um tradutor iria lidar com esse
trecho”? Como
nessa época eu ainda tinha meio essa ideia de que existem coisas
intraduzíveis,
resolvi cotejar o original com a tradução do Paulo Henriques Britto e vi
que ele
tinha feito coisas muito legais com o texto para conseguir um efeito
estético parecido
em português. Ele também traduziu alguns livros do Kerouac que mais
tarde traduzi,
e sempre que possível eu dava umas espiadas nas traduções dele e ficava
satisfeito ao ver que, apesar de as traduções serem bem diferentes, a
maneira
como nós tratamos o texto é parecida. Acho que não são traduções com
interpretações muito diferentes quanto ao que deva ser feito com aquele
texto.
Não costumo fazer cotejos integrais quando existe outra tradução de um
livro no
qual esteja trabalhando, mas sempre que possível acho importante
comparar
trechos.
Além
do inglês,
trabalhaste também com traduções de diversos outros idiomas. Como
surgiram as
oportunidades de traduzir outras línguas?
As coisas no
mercado de tradução acontecem de um jeito muito imprevisível. Hoje,
tenho
traduções publicadas de inglês, sueco, alemão e húngaro, e esse ano vai
sair
uma tradução do norueguês. Isso começou quando o pessoal da L&PM
descobriu
que eu tinha estudado alemão e me pediu para ler um livro e escrever um
parecer
dizendo se valia a pena publicá-lo aqui no Brasil ou não. Eu disse que
não tinha
como traduzir aquele livro, mas como era simplesmente um parecer
crítico, topei
ler . Depois fiz pareceres de outras obras alemãs e essas leituras
melhoraram
consideravelmente o meu conhecimento da língua. Mais tarde surgiu a
oportunidade de traduzir alguns textos do Kafka, e aceitei a proposta
depois de
analisar os textos e passar um bom tempo pesquisando para terminar o
trabalho.
Também passei vários anos estudando sueco em Porto Alegre, e por conta
disso eu
tinha umas traduções engavetadas de peças do Strindberg traduzidas do
sueco. Em
2010 essas peças foram publicadas pela Hedra no volume Senhorita
Júlia e outras peças, e em função disso no ano passado a
L&PM me perguntou se eu leria um livro em norueguês, já que sueco e
norueguês são línguas extremamente parecidas. Topei e fiquei
impressionado com
a facilidade que tive para fazer a leitura. No fim acabei traduzindo o
livro.
Quais
são as
características que um bom tradutor precisa ter?
Tem que
gostar de ficar quieto, de pesquisar... acho que por esse lado é
necessário ser
meio perfeccionista, porque isso ajuda muito na hora de pesquisar. Não
se pode
simplificar demais e deixar coisas de fora do texto – e por isso em
certas
situações o tradutor passa dias procurando a solução adequada para uma
parte
especialmente difícil de um livro. Tem um trecho em A cor que caiu do
espaço, por exemplo, que traz a descrição de um
poço. Bem, todo mundo sabe o que é um poço. Mas, lá pelas tantas, o
Lovecraft
faz uma distinção em inglês entre o “furo” do poço e a “mureta” ao redor
do
furo. Quais são os nomes em português para o “furo” do poço e a
“mureta”? Eu
não sabia. Como se chama o negócio que tu usa para erguer o balde? Eu
também
não sabia. E assim tu passa uma tarde inteira procurando uma maneira boa
de
resolver essa parte do texto – e isso é o que eu considero a parte mais
interessante da tradução.
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