Entrevista: Gunter Axt
Nascido na capital gaúcha, o historiador Gunter Axt ajuda, com suas publicações, a registrar e estudar a identidade cultural do brasileiro. No ano que passou, o autor empenhou-se na produção de quatro livros, dos quais três tratavam sobre o Rio Grande do Sul, sendo que dois deles possuíam como foco central a cidade de Porto Alegre.
Devido à contínua atuação de Axt na retratação do porto-alegrense e gaúcho, conversamos por e-mail com o autor sobre a função do historiador, os campos da Literatura e da História e suas produções culturais em 2011.
CLL - Em que medida o trabalho do historiador, na exposição da construção da identidade cultural de um povo, exerce efeito na sociedade retratada?
Cada época, cada sociedade, compreende ao seu modo a função do
historiador. Na antiguidade Greco-romana, a sua centralidade cultural
era notória. Heródoto, Tucídites e Homero ao contarem histórias, falavam
das tradições, reproduziam valores da comunhão social, faziam
literatura e poesia e se remetiam ainda ao universo do sagrado. No
século XIX, o ofício do historiador esteve umbilicalmente ligado à
construção e consolidação dos estados nacionais. No Brasil, por exemplo,
a fundação do Instituto Histórico e Geográfico relaciona-se com o
processo de independência de Portugal e o trabalho de Adolpho de
Varnhagen, nosso primeiro grande historiador, ao fazer o elogio da
colonização portuguesa e da sociedade patriarcal, sustenta a viabilidade
de um Brasil autônomo, desde que sob o tirocínio da monarquia. O
filósofo italiano Benedetto Crocce, por sua vez, prestigiou de tal modo o
ofício do historiador que atribuiu à disciplina da história o lócus
privilegiado para a produção de sentidos nas Humanidades, espaço até
então ocupado pela Filosofia. Isto porque, para ele, a boa história
seria aquela que inquire o passado a partir de impasses dispostos no
presente, procurando forjar-lhes explicações. Nesse sentido, a história
dinâmica e criativa nada teria a ver com uma filológica coleção de
datas, fatos e documentos, nem tampouco com o elogio poético ou
laudatório de uma biografia ou de uma nação, mas sua função repousaria
na construção de nexos explicativos para as pessoas. Eis aí um ponto de
convergência entre a história ciência e a história aplicada, isto é,
aquela de matiz mais acadêmico e a que dialoga com um público amplo. E,
de fato, sinto que vem crescendo a demanda da sociedade pela oferta de
nexos e sentidos entre um presente excessivamente acelerado e
fragmentado e o passado. Há uns 20 anos atrás, olhávamos para os
franceses com admiração quando percebíamos que na França livros de
história podiam ser Best-sellers. Esta já é uma realidade no Brasil.
Hoje, são os intelectuais franceses que olham com admiração para o
Brasil, atentos à efervescência do nosso mercado editorial, à excelência
das revistas de divulgação de cultura e ao gigantismo dos nossos
congressos de historiadores. A opinião dos historiadores é cada vez mais
requisitada. Ainda há um longo e árduo caminho a ser percorrido para a
valorização do ofício do historiador no Brasil, mas, penso, já se
avançou bastante.
CLL - Participaste do livro "Identidade: Porto Alegre - Brasil", dos fotógrafos Leonid Streliaev, Liane Neves e Adriana Franciosi. Neste documento, como lidaste com a tarefa de encapsular em textos pequenos o espírito e história da capital gaúcha?
Foi um desafio considerável. Meu convívio com jornalistas foi
fundamental para incorporar à minha escrita o esforço de síntese e a
economia de palavras. Além disso, apreendi da vivência com as pautas
jornalísticas, tanto na mídia impressa quanto na televisiva, ou no
rádio, que é preciso adaptar-se a mensagem que se deseja transmitir ao
espaço efetivamente disponível. É claro que muitas vezes podemos perder
conteúdo ao resumir matérias. Por outro lado, pode-se ganhar em ênfase,
pois menos também pode ser mais. No caso em tela, procurei pensar nos
conceitos que pareciam definir a cidade de Porto Alegre. Cada conceito
ganhou um texto de um ou dois parágrafos. Estes textos foram muito mais
afetivos, imagéticos e literários do que ferramentas de sustentação
acadêmica. Mas, afinal, esta era a proposta do livro: de forma imagética
e sintética transmitir uma percepção pungente da cidade de Porto Alegre
para as pessoas. Trabalhar com três fotógrafos renomados e competentes
foi um grande estímulo.
CLL - No livro "Histórias de Porto Alegre: Redenção", compartilhas a autoria com Moacyr Scliar, que deixou saudades para os porto-alegrenses. Como foi construir um produto literário contando com os textos do renomado escritor gaúcho? Existe limite entre o trabalho do historiador e do escritor, ou a história também pode ser considerada literatura?
CLL - No livro "Histórias de Porto Alegre: Redenção", compartilhas a autoria com Moacyr Scliar, que deixou saudades para os porto-alegrenses. Como foi construir um produto literário contando com os textos do renomado escritor gaúcho? Existe limite entre o trabalho do historiador e do escritor, ou a história também pode ser considerada literatura?
O Scliar era uma pessoa de convívio agradável, uma alma muito
generosa. Estava sempre disposto a colaborar com a literatura, com os
jovens escritores, com a cultura da cidade. Foi um modelo de intelectual
para todos nós. Compartilhar com o Moacyr a autoria de um livro sobre
Porto Alegre foi uma honra e conviver com ele nesse processo uma glória.
Nossa dinâmica de trabalho foi simples: combinamos que eu me debruçaria
mais sobre os aspectos propriamente históricos do parque e ele se
proporia a uma abordagem mais impressionista e afetiva.
Sim, eu acho que a história é uma classe de narrativa e uma forma de literatura. Dependendo de como escrevemos, matizamos uma ou outra mensagem, afunilamos ou ampliamos o espectro dos nossos leitores. Historiadoras como Bárbara Tuchman e Camille Paglia sempre foram, destarte, uma fonte de inspiração. Ambas possuem argumentos cientificamente bem calçados, que vazam com rigor e sedução literários.
CLL - Tens especialização em diversos campos dentro do estudo da História: Econômica, Direito e Poder Judiciário, Militar e Cultural. Com essa bagagem de conhecimentos e a agenda de palestras, lançamentos, produção de textos para diversas publicações, como conciliar o foco de cada tema à proposta do dia?
Num certo sentido, a História é uma disciplina ingrata. Quanto mais
estudamos e pesquisamos, menos sabemos, pois ela abarca, pela sua
própria natureza, tudo o que figura no domínio do humano e da cultura.
Todo escritor vive uma tensão inerente, entre a necessária introspecção
para a escrita e, por outro lado, a extroversão, quando se divulga seu
trabalho e se colhe matéria social para sua escrita. Além dessa tensão
estruturante, o historiador ainda vive outra, qual seja, a que confronta
o impulso no sentido da erudição e o influxo em direção à
especialização. Um bom trabalho científico precisa ser especializado,
precisa discutir as fontes ao nível dos pequenos detalhes. Mas o
trabalho de qualidade não se faz também sem boa dose de erudição, pois é
dali que se tira a percepção do contexto e é o contexto que nos permite
avaliar a especificidade da matéria com a qual trabalhamos. Eu sempre
percebi a História Cultural como uma fronteira sofisticada e complexa da
nossa disciplina. Mas entendia que, para chegar lá, era preciso passar
pela História Econômica e Política primeiro, pois parecia fazer pouco
sentido discorrer sobre as tramas da cultura sem compreender
razoavelmente o contexto das relações de trabalho e de poder. O
interesse pela História Militar, no meu caso, foi um desdobramento do
olhar sobre o político. E a especialização em História do Direito e da
Justiça, em minha vida, foi em grande medida uma decorrência do meu
trabalho com os projetos de memória institucional, do trabalho com a
história aplicada, com a gestão cultural com foco no patrimônio
histórico.
O mais difícil, creio, quando se lida com temas tão diversos é voltar a um assunto tratado em um artigo ou em um livro um, dois, dez anos antes. Às vezes, as pessoas me convidam para palestras e eu tenho de estudar os meus próprios livros para poder proferi-las, pois o tema não está mais fresco na memória. E, quando se está enfronhado em outro assunto, retornar a algo já tratado não é fácil, demandando considerável esforço de concentração e tempo.
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