Ilha Deserta com Walter Galvani

A duas semanas do Festival de Inverno, nossa Ilha Deserta está recebendo os ilustres palestrantes que visitarão o Centro Cultural a partir do dia 25 de julho.

Nesta semana, o escolhido é Walter Galvani. O jornalista ministrará a Oficina de Crônica nos dias 25, 26, 27, 28 e 29 de julho, das 10h30min às 12h. A inscrição custa R$ 20.

Qual livro você levaria para uma ilha deserta?

Walter Galvani - Hum, gosto muito de biografias. Levaria A Última Estação, de Jay Parini, que conta a história do escritor russo Leon Tolstoi.


Livro

A Última Estação (Editora Record, 416 páginas, R$ 49,90) narra os momentos finais da vida de Tolstói. Dividido entre a doutrina de pobreza que pregava e a realidade da própria riqueza, o velho mestre da literatura russa arquiteta uma fuga dramática. No entanto, doente demais para continuar sua viagem, é obrigado a parar na estação ferroviária de Astapova, acreditando que morrerá sozinho.

Trecho

1. SOFIA ANDRÉIEVNA

Outro ano começa e, com ele, chegamos ao fim da primeira década do novo século. Escrevo os estranhos números no meu diário. 1910. Parece mentira.

Liôvotchka está dormindo agora e não acordará antes do amanhecer. Instantes atrás, fui atraída por seu ruidoso ronco e segui pelo corredor até seu quarto. O ronco ressoa pela casa como uma porta rangendo, e os criados riem dele. "O velho está serrando madeira", dizem, bem na minha frente. Não me respeitam mais, e eu lhes retribuo com indiferença.

Os roncos de Liovôtchka não me incomodam, porque atualmente dormimos em quartos separados. Quando dormíamos na mesma cama, ele tinha dentes: diminuíam o barulho.

Sentei-me em sua estreita e pequena cama e puxei até seu queixo o cobertor cinzento, com desenhos simétricos. Ele estremeceu, fazendo uma careta monstruosa. Mas não acordou. Quase nada consegue acordar Liev Tolstói. Ele se entrega completamente a tudo que faz: dormir, trabalhar, dançar, cavalgar, comer. Constantemente os jornais publicam coisas sobre ele. Até em Paris os matutinos adoram pequenos mexericos a seu respeito, a nosso respeito - verdadeiros ou falsos, não importa. "O que o conde Tolstoi prefere comer no desjejum, condessa?", perguntam, enfileirados na varanda da frente, prontos para fazer entrevistas, durante todos os meses de inverno, quando o clima de Tula faz com que se torne um lugar agradável. "É ele quem corta o próprio cabelo?" "O que ele está lendo agora?" "A senhora lhe deu algum presente no dia de são Leão?"

Não me importo com as perguntas. Respondo apenas o bastante para irem embora satisfeitos. Liôvotchka parece que não liga. Não lê as matérias jornalísticas, de qualquer maneira, mesmo quando deixo tudo na mesa, junto de seu café-da-manhã. "Não têm o menor interesse", diz. "Não sei como alguém se dá ao trabalho de publicar tolices como essas."

Mas ele dá uma olhada nas fotografias. Há sempre um fotógrafo aqui, trabalhando sem parar, implorando poses. Tchertkov é quem mais aborrece. Ele se acha um artista com a câmera, mas é tão tolo com ela como em tudo o mais.

Liôvotchka continuou a dormir, enquanto eu lhe acariciava o cabelo. O cabelo branco que cai sobre a fronha engomada. A barba branca parece espuma do mar levada pelo vento, um macio borrifo de cabelos, não é áspera como a do meu pai. Falei com ele enquanto dormia, chamei-o de "queridinho". Velho como está, parece uma criança, todo meu para acarinhar, tomar conta, proteger das pessoas loucas que caem em cima de nós diariamente, os seus chamados discípulos - todos liderados, ou inspirados, por Tchertkov, que é, incontestavelmente, satânico. Acham que ele é Cristo. Liôvotchka acha que é Cristo.

Beijei-o nos lábios enquanto ele dormia, aspirando seu hálito de bebê, doce como leite. E lembrei-me de um dia luminoso, há muitos anos, quando eu tinha vinte e dois anos. A barba de Liôvotchka era escura então. Suas mãos eram macias, embora ele passasse muito tempo com os mujiques, trabalhando nos campos ao lado deles, especialmente na ocasião da colheita. Fazia isso, na verdade, como divertimento. Ou como exercício. Não era tanto uma questão de honra, como seria mais tarde, quando gostava de se imaginar, no fundo do coração, como um dos nobres mujiques que adorava.

Estava escrevendo Guerra e paz e todo dia me trazia páginas para passar a limpo. Acho que jamais fui tão feliz quanto naqueles momentos em que minha mão ia preenchendo aquelas páginas, enquanto a tinta nanquim convocava a mais pura e sagrada visão que alguém já teve. Liôvotchka também nunca foi tão feliz. Sempre preferiu trabalhar, entregue aos seus grandiosos e doces sonhos.

Só eu podia decifrar a escrita de Liôvotchka. Seus hieróglifos, verdadeiros caranguejos, enchiam as margens das folhas de provas, enlouquecendo os impressores. Havia correções por cima de correções. Nem ele próprio conseguia entender o que escrevera, na maioria dos casos. Mas eu, sim. Adivinhava suas intenções e as palavras me vinham com clareza. Às tardes, bebendo chá de tília, ficávamos sentados durante horas, discutindo modificações, junto a uma lareira onde a turfa ardia. "Natacha não diria nunca uma coisa dessas ao príncipe Andrei", eu lhe dizia. Ou: "Pierre está ingênuo demais, aqui. Ele não é tão estúpido quanto finge ser". Eu não deixava que escrevesse em excesso. Nem lhe permitia cochilar em seu gabinete e passar tempo demais cavalgando, ou nos campos. Liôvotchka tinha trabalho mais importante para fazer. Levava-o para sua escrivaninha. Eu era fundamental para ele.

Mas, agora, não tenho mais importância.

Não é mais como nos primeiros anos, como naquele 17 de setembro, meu dia onomástico, quando eu tinha vinte e dois anos e era esbelta e linda como um narciso.

Tínhamos três filhos pequenos, naquele tempo. Tomar conta deles, cuidar de toda a propriedade (Liôvotchka jamais soube tratar dos detalhes, ou da administração - nem naquele tempo nem agora) e copiar seus manuscritos enchiam exaustivamente meus dias. Mas eu não me queixava, mesmo quando ele passava horas intermináveis em seu gabinete com aquela tola Maria Ivânovna, tão metida a sabichona, e que se grudara nele como uma ostra.

Eu sabia que ela ia desaparecer. De todas as mulheres da vida dele, só eu fiquei. Elas não conseguiram me derrubar e não conseguirão.

Foi em 1866. Lembro-me porque, naquele ano, nosso abençoado tsar, Alexandre, foi salvo pela graça divina. Um milagre. Caminhava pelo Jardim de Inverno, como fazia diariamente, quando um jovem de mente perturbada (de família bem conhecida, infelizmente lástima!) atirou nele com uma pistola. A mão rápida de um mujique salvou o tsar, arremessando a pistola para o lado.

Naquela mesma noite, em Moscou, Liôvotchka e eu fomos ao teatro, como costumávamos fazer então. No início do espetáculo a platéia inteira ficou de pé e gritou: "Deus salve o tsar!". Eu jamais vira tanto choro! Durante semanas, a seguir, fui agradecer a Deus, em missas especiais celebradas na capela de são Nicolau, perto do Kremlin. Os russos precisavam de seu tsar naquele tempo. Precisam dele ainda agora, apesar do que dizem meu marido e seus amigos. Muito me admira que a polícia ainda não os tenha feito calar a boca. Se Liôvotchka não fosse tão poderoso quanto o próprio tsar, tenho certeza de que o fariam.

Claro, Liôvotchka não quer me ouvir a respeito desse assunto. Despreza o tsar por princípio. Mas, em nossos primórdios juntos, também era monarquista. Adorava Alexandre, que libertara seu primo, general-de-divisão príncipe Volknoski, um dos dezembristas enviados para a Sibéria por Nicolau I. Sua mulher, a princesa, fora também para o exílio, deixando um filho pequeno.

Naquele meu dia onomástico, há tanto tempo, a luz do fim do verão descia de viés por entre as bétulas. Passei a manhã sozinha, vagueando pelo bosque de Zasieka, sentindo o cheiro da terra fértil, das flores tardias. Um bordo, para minha surpresa e horror, já estava todo vermelho, parecendo um sino aceso, sob uma estranha luz. Fiquei ali em pé, bem debaixo dele, sem conseguir conter as lágrimas.

Liôvotchka surgiu por trás da árvore. Com uma camisa branca, parecendo mais um mujique do que um nobre, ele me estonteou com seu olhar. Que intensidade! Será que ele me seguira até ali?

- Por que essas lágrimas, minha pequena Sônia? O que aconteceu?

Mordi o lábio.

- Nada - respondi.





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