O centésimo em Roma
Finalista do Prêmio Açorianos de Literatura 2011 na categoria Narrativa longa, O centésimo em Roma (Rocco, 2011), de Max Mallmann, transporta o leitor para o cenário comum da cultura ocidental em um tempo no qual o cristianismo era visto como culto rebelde. A história se passa em 68 d.C. e acompanha os esforços do centurião Desiderius Dolens para se tornar cavaleiro do Império e se livrar do status de plebeu. De volta à capital imperial depois de batalhas contra povos bárbaros, o protagonista legionário acaba por se envolver na investigação do assassinato de um senador enquanto luta para subir na hierarquia romana. O livro possui como base uma detalhada pesquisa histórica por parte do autor para a 'reconstrução' da cidade. O cotidiano mostrado na obra é claro, compreensível - o leitor consegue enxergar as vielas de Roma e absorver conhecimento quanto à estruturação social e as motivações pessoais dos personagens. A narrativa oferece diversos momentos humorísticos, recheados de ironia, principalmente nas decisões, diálogos e raciocínios de Dolens.
A história possui, curiosamente, dois narradores: Quintus Trebellius Nepos, combatente sob o comando de Dolens, cujas palavras contam a história do centurião num tomo intitulado "Vita Dolentis"; e a voz de um narrador onisciente, cujos relatos permitem expressar pensamentos e conversas travadas pelos personagens. Os dois pontos de vista são complementares - o narrador personagem pode contribuir para a inserção do leitor na narrativa por oferecer impressões 'humanas' da história e a 'voz de Deus(es)' permite maiores esclarecimentos, desprovidos de opiniões implícitas, quanto à trama que se desenrola. Sem dúvidas, há material de sobra nas 424 páginas do livro para imergir o leitor na sociedade romana, onde conspirações originárias de dentro e de fora do Império prometem envolver a cidade em caos.
Integrante da equipe de roteiristas do seriado A grande família desde 2005, o porto-alegrense Max Mallmann já assinou os romances Confissão do Minotauro, Mundo bizarro, Síndrome de quimera e Zigurate.
Pendurada num cabide, está a couraça de Dolens, que tanto tempo o acompanhou na Germânia. É feita de vinte e seis placas de ferro ligadas por tiras de couro e presilhas de bronze - a famosa loriga segmentada das legiões do Império.
- Não posso mais usá-la? - pergunta ele, como uma criança de quem tomam o brinquedo. - Nem de vez em quando?
- Você tem de se contentar com a vestimenta dos legionários estacionados na Cidade - diz Anacletus, o armeiro da Castra Praetoria, com entonação de tio.
- É ridículo que, em Roma, sejamos obrigados a usar o mesmo tipo de uniforme que os homens de Julius César envergavam há cem anos.
- O uniforme é bom - Anacletus contrapõe, vai até uma bancada e pega uma cota de malha. - Uma túnica feita de anéis de ferro! - ele sacode a cota de malha diante de Dolens. - Muito mais flexível que a sua velha loriga.
- Mais pesada, também. Menos resistente.
- Por outro lado, a manutenção é mais simples. Tudo o que você precisa fazer para evitar a ferrugem é untá-la regularmente com banha de porco.
- Fico feliz em saber que passarei o resto da vida fedendo como um porco morto.
- Então, em vez de banha, use azeite.
- Que agradável. Se eu tiver uma cota de malha embebida em azeite, posso acrescentar uma pitada de sal e umas gotas de molho de peixe e comê-la no almoço.
Anacletus, que é pequeno e esquálido, ergue os olhos para encarar Dolens:
- Você não está muito feliz, está?
- Menos do que quero, mais do que talvez mereça. Separe uma cota de malha de tamanho médio. Aliás, grande. Quem vive de matar ou morrer merece um traje confortável - ele hesita - Quanto aos escudos, preciso usar esses daí?
- Aqui usamos escudos ovais. Só vocês, da fronteira, é que vieram com essa inovação de escudos retangulares.
- Os retangulares são melhores para a defesa.
- Mas piores para o ataque. Um legionário protegido por um escudo oval tem uma liberdade de movimentos muito maior com o gládio.
- Em compensação, possui mais pontos vulneráveis. As arestas de um escudo retangular servem justamente para dificultar o ângulo dos golpes do adversário.
- Meu rapaz, agora você é urbaniciano. Sua função não é mais enfrentar selvagens. É reprimir cidadãos desarmados. Tanto faz o escudo que você carrega.
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