A volta do furacão Elis

Exatamente 30 anos atrás, falecia uma das maiores cantoras do Brasil -- e, segundo muitos, a maior cantora que o país já ouviu: Elis Regina Carvalho Costa. E, durante 2012, o que não vai faltar serão homenagens e à memória e à obra de Elis. Como o jornal O Globo já noticiou, estão programadas mostras, documentários, reedições de seus discos, enfim, um banquete para os fãs da intérprete.


Mas e quanto aos livros? Infelizmente, a bibliografia sobre a cantora não é exatamente conhecida por sua extensão, mas para esse ano dois livros já foram anunciados. Um é a biografia Furacão Elis, de Regina Echeverria, lançada originalmente em 1985 e que agora sai com edição revista e atualizada pela LeYa. Echeverria foi amiga pessoal de Elis desde 1976, e, segundo a própria, a publicação do livro foi uma espécie de missão pessoal para ela. "Só fiz esse livro porque me comprometi com ela, à beira da piscina da casa da Cantareira", disse a escritora em entrevista na edição de domingo passado d'O Globo. Leia abaixo um trecho do primeiro capítulo do livro:
Num boteco de meio de quarteirão de São Paulo, bairro classe média, dona Ercy Carvalho Costa atende fregueses até às oito da noite. Há quem goste de sentar no balcão e comer o almoço de dona Ercy, famoso nas redondezas. Dona Ercy caminha a pé pra casa, a meio quarteirão dali. Mora sozinha aos sessenta e três anos desde que morreu o marido, Romeu Costa, em dezembro de 84. Sempre que fala da filha Elis, ela chora. Mistura ódio e amor numa velocidade quase tão rápida quanto a que costumava ter sua própria filha e me diz, chorando e apertando os dentes:
- Eu não perdôo.  
Memória fabulosa para uma mulher que parece encontrar no instinto de sobrevivência a força para continuar trabalhando no bar e pagar o aluguel. Talvez enlouquecesse também dentro de casa, sem nada pra fazer. Quando dona Ercy enxuga as lágrimas que correm por debaixo dos óculos grossos, me dá uma sensação de paralisia de afeto. Parece impossível acariciá-la e confortá-la. Uma altivez gaúcha envolve essa rocha matriarcal, a líder implacável da infância e adolescência de Elis Regina.  
Dona Ercy, filha de imigrantes portugueses, cristãos-novos, donos de mercearia no extremo sul do Brasil. Encontrou um Romeu brasileiro, filho de brasileiros, com cara de índio, caladão, emprego seguro numa fábrica de vidros. Foram morar no Bairro de Navegantes em Porto Alegre, numa casa de madeira, quintal de terra batida.  
A filha do casal nasceu estrábica e deve o nome Elis a uma amiga de dona Ercy. Regina vem de uma exigência legal. Na burocracia da época, as crian­ças não podiam ser batizadas com nomes que tanto serviam para meninos como para meninas. Já preven­do que não pudesse batizar sua menina apenas Elis, dona Ercy mandou um Regina de reserva.  
Elis Regina Carvalho Costa, 17 de março de 1945, parto normal feito pela parteira Conceição e pela enfermeira Marlene no Hospital Beneficência Portuguesa, Porto Alegre. Um sábado, às três e dez da tarde.  
Primeira filha, primeira neta de uma família numerosa. De duas famílias numerosas. Tinha uma saúde de ferro, e a mãe não se lembra de ter perdido uma noite de sono - Elis dormia pontualmente às oito da noite. Sempre no escuro, tudo apagado.  
Dona Ercy transformou a primogênita dos Carvalho Costa numa bonequinha estrábica. De pequena já se previa que ela não iria muito longe em altura. Elis andava sempre bem arrumadinha, sempre bem vestida, laçarotes na cabeça e óculos de grau desde os quatro anos. Nas recordações mais remotas de sua mãe, era uma criança obediente. Gostava de brincar sozinha, costumava andar pelo quintal com uma bol­sa de palha, falando sozinha.  
Até perder o emprego de chefe do almoxari­fado da Companhia Sulbrasileira de Vidros, Romeu Costa era um homem sensível. Gostava de ler Hemingway e ouvir Chico Alves e Carlos Gardel. Antes de se casar, ganhou o segundo lugar num pro­grama de calouros e, de vez em quando, num rom­pante, se vestia com os longos camisolões de dona Ercy e saía cantando e bailando pela casa. Devia ter uma forte ascendência na pequena cabeça de Elis, porque durante anos ela acreditou que ele era de fato um bailarino. Ficou decepcionada.  
Na casa dos Carvalho Costa, o rádio tocava a música do Brasil, pela Nacional do Rio, e a música da Argentina, pelas ondas da Rádio Belgrano. Aos domingos, quando se reunia toda na casa da avó Ana, mãe de dona Ercy, a família costumava fazer barulho na mesa. Cantar alto, gargalhar. A pequena Elis can­tava Adiós pampa mia do começo ao fim, sem desa­finar, sem errar a letra. E foi num desses domingos que a avó Ana teve um rompante:  
- Por que não levam essa guria ao Clube do Guri?
A outra biografia programada para sair esse ano é de autoria do jornalista Julio Maria, do Estado de S. Paulo. O livro foi encomendado pelo filho de Elis, João Marcelo Bôscoli, e será lançado pela editora MasterBooks.

E, para fechar, nada melhor do que ficar com a própria Elis. Abaixo, ela interpreta a música "É com esse que eu vou", no programa Ensaio da TV Cultura:

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