Puro Caio

Durante o 6º Festival de Inverno, ao lado do diretor teatral Luciano Alabarse, o jornalista e crítico musical Juarez Fonseca irá falar sobre a vida e obra de Caio Fernando Abreu.

Os dois se conheceram em 1972 e, desde então, tiveram uma relação bastante estreita. "Atravessamos noites ouvindo Caetano Veloso, Pink Floyd, Beatles, Lou Reed, Billie Holiday, viajamos juntos para a Europa, trabalhamos na mesma redação de jornal", escreveu Fonseca.

Publicamos a seguir trechos de uma entrevista que o jornalista fez com Caio em 1982, na ocasião do lançamento de Morangos Mofados. Juarez considera que "essa entrevista é puro Caio e, estou certo, motivará boas reflexões sobre ele."

FELICIDADE É TER AMIGOS
Para mim, atualmente, companheirismo e lealdade são sinônimos de felicidade. Meus amigos são muito fortes e muito profundos, são amigos de fé, para quem eu posso telefonar às cinco da manhã e dizer: olha, estou querendo me matar, o quê que eu faço? Eles me dão liberdade para isso, não tenho relações rápidas, quer dizer, tenho porque todo mundo tem, mas procuro sempre aprofundar. E isso é felicidade, você poder contar com os outros, se sentir cuidado, protegido. Dei esse exemplo meio barra pesada de me matar... esquece, posso ligar convidando para ver o nascer no sol no Ibirapuera às cinco da manhã. Já fiz isso, inclusive.

MAIS PERTO DO MATO OU DO MAR
Ah, é uma besteira, um papo tão antigo, mas eu gostaria de ficar mais perto do mato ou do mar. Vou muito para a fazenda da Hilda Hilst em Campinas. É onde eu me sinto realmente bem. Fumo menos, naturalmente durmo bem, sem pesadelos. Tenho tempo, leio, relaxo. Eu queria uma coisa assim, mas não sei onde. Ando irritado em São Paulo, a cidade é muito barulhenta, muito agressiva, meio insuportável.

A COCAÍNA E A ILUSÃO DO PODER
Tem droga mais urbana que a cocaína, mais de consumo? É uma coisa de poder, a cocaína te dá uma ilusão de poder, é uma droga completamente capitalista, te reforça o ego, não te dá autoconhecimento nenhum, você tem a ilusão de ter superpoderes. E o álcool, outra droga cada vez mais popular entre os jovens, embota os sentidos. As pessoas já não suportam sentir tanto. Minha geração estava muito mais preocupada com o espírito, lembra como nos preocupávamos com o alto astral, em fazer uma boa viagem, ver Deus, voar? Agora é uma outra coisa.

TODAS AS COISAS NUMA SÓ
O homossexualismo está sendo mais aceito, ou mais entendido, mas só de certa forma. Porque continua sendo um estigma. Antes, a pessoa ser homossexual era a lama. Aí a coisa passou a ser mais discutida, relatórios daqui e dali, e de repente virou moda. Mas profundamente a questão não foi resolvida. Nunca me liguei a movimentos de liberação gay porque eu acho que não existe homossexualismo, existe sexualismo. As pessoas são sexuadas ou assexuadas. Tem gente que é assexuada e não gosta de transar. Mas se você é sexuado e você transa, às vezes você transa com homem, às vezes transa com mulher, transa com pessoas. Quando você põe o rótulo homossexual, reforça preconceitos. Nós nos perdemos de nossa condição de bicho, de animal, e aí ficou essa coisa dividida, ou você é heterossexual ou é homossexual, ou é de esquerda ou de direita. Está tudo partido, tudo fragmentado. Acho que a grande esperança seria a esperança de voltarmos a ser um. Ou sermos todas as coisas numa só, que é o que não conseguimos.

OUVINDO OS PROBLEMAS DOS OUTROS
A psicanálise me ajudou a me sentir menos rejeitado, a expressar melhor o meu amor pelas pessoas, a dividir, a ter menos pudor de amparar pessoas ou de me amparar em pessoas, de dividir o que é bom e o que é ruim, me ajudou muito a ver o não-eu, o que está fora de mim. Eu fazia psicodrama em grupo, ouvia muito os problemas dos outros, e chegou a um ponto que eu até conseguia ajudar os outros. No ano passado fiz um workshop de 15 dias com 60 pessoas numa fazenda em Pirassununga, isoladas, terapia intensiva. Três pessoas piraram. O quarto onde eu estava ficou conhecido como o reduto da sanidade. Fiquei completamente espantado com isso. Essa experiência foi uma das coisas mais importantes da minha vida.

O QUE É A LITERATURA?
Fico um pouco confuso com essa roda viva em que estou há duas semanas com essa história de lançamento do livro, com entrevistas e conversas e tudo. Fica muito ego, super ego. Isso me perturba. Acho que eu não tenho importância nenhuma, acho que meu livro não tem importância, não vai modificar nada. Mas escrever para mim é muito importante e talvez eu seja veículo de alguma coisa misteriosa. Não sei, quem sabe eu possa ajudar alguma pessoa que me ler a entender melhor o momento que ela está vivendo. Mas isso é ocasional. Não acho que meu livro tenha importância social. Significação literária sim, eu acho que ele tem. Tem forma, é maduro, é bem cuidado, é bonito. Mas o que é a literatura? O bonito é uma preocupação grande minha, o estético. Até a dor. A estetização da dor.

PALAVRAS, APENAS PALAVRAS
Ontem me lembraram de uma entrevista que dei lá por 1974, ou 75, em que eu disse que todo homem com mais de 30 anos era um canalha. Pois é, cá estou com 33, três de canalhice absoluta... São palavras... Lembra da música do Marcos Valle que dizia “não confie em ninguém com mais de 30 anos”? A Magliani costuma dizer muito: “Não confie em ninguém com menos de 30 anos”. São palavras. Eu detestava Elis Regina. E de repente passei a amar loucamente o trabalho dela. E assim com mil coisas, quer dizer, você dá volta, revisa, nada é definitivo. Acho esquisito me cobrarem uma coisa que eu disse há dez anos.

SOMOS MUITO IRREGULARES
Tenho a impressão de que o amadurecimento é o sim, o yes. Sim ao amor, ao sexo, à terra, aos edifícios, à lama, à chuva, ao belo, ao feio, ao que há, ao que é. Talvez o que a gente chama de maturidade seja isso. Aceitar as coisas que existem. A gente passa muito tempo negando. Amadurecer não é parar, e parar não é necessariamente uma coisa negativa. Sempre lembro que ``parada’’, em grego, é ``êxtase’’. Aceitação é a palavra. Aceitar completamente as muitas coisas que você é. Somos invejosos de vez em quando, vingativos, temos impulsos homicidas, temos momentos de amor imenso, somos muito irregulares.

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