As últimas linhas

Testamento

O que não tenho e desejo
É que melhor me enriquece.
Tive uns dinheiros — perdi-os...
Tive amores — esqueci-os.
Mas no maior desespero
Rezei: ganhei essa prece.

Vi terras da minha terra.
Por outras terras andei.
Mas o que ficou marcado
No meu olhar fatigado,
Foram terras que inventei.

Gosto muito de crianças:
Não tive um filho de meu.
Um filho!... Não foi de jeito...
Mas trago dentro do peito
Meu filho que não nasceu.

Criou-me, desde eu menino
Para arquiteto meu pai.
Foi-se-me um dia a saúde...
Fiz-me arquiteto? Não pude!
Sou poeta menor, perdoai!

Não faço versos de guerra.
Não faço porque não sei.
Mas num torpedo-suicida
Darei de bom grado a vida
Na luta em que não lutei!

Manuel Bandeira
(29 de janeiro de 1943)


Caracterizado como um ato solene, ainda que revogável, a criação de um documento em que constem as últimas vontades de um indivíduo já foi utilizada por diversos escritores, a fim de resguardarem suas obras para a posteridade.

Machado de Assis, falecido em 29 de setembro de 1908, fez dois testamentos: Um em junho de 1898, instituindo herdeira única e universal de seus bens sua mulher, Carolina Augusta de Novais Machado de Assis. Com o falecimento da esposa, entretanto, em maio de 1906, depois de efetuar partilha amigável com a irmã de Carolina, Adelaide Xavier de Novais, e sobrinhos, fez o segundo testamento, instituindo sua herdeira única "a menina Laura" (já então com cerca de quinze anos de idade), filha de sua sobrinha Sara Gomes da Costa e de seu esposo major Bonifácio Gomes da Costa, nomeado primeiro testamenteiro.

“Eu, Joaquim Maria Machado de Assis, morador à Rua Cosme Velho número 18, querendo fazer o meu testamento, efetivamente o faço.” (...) “Declaro que sou possuidor de doze apólices gerais da dívida pública do valor de um conto de réis cada uma e do juro de 5% ao ano, as quais se encontram depositadas no London and Brazilian Bank Limited. Possuo também algum dinheiro depositado na conta corrente do mesmo banco e novas quantias recolhidas à Caixa Econômica em caderneta nº 14.304 (segunda série).”

Outro de nossos escritores, Mário de Andrade, deixou um documento que, a partir de sua morte em 25 de fevereiro de 1945, foi determinante para os trabalhos e estudos sobre sua obra.

"Não deixo lembranças, objetos meus a ninguém. Tenho tão bons e numerosos amigos que tenho medo de numa lista organizada à pressa esquecer alguém. (...) Eu apenas pediria que tudo fosse com ofício, no interior do qual enumeraria todo o doado, peça por peça, guardando cópia, pra que não desapareça nada por roubo. A tudo o mais, roupas, objetos, e o que eu por acaso tenha esquecido, a família distribuirá de acordo com o seu critério e o critério a que obedeci aqui. Não dôo na por vaidade e toda doação será feita sem alarde. Dôo apenas porque nunca colecionei para mim, mas imaginando me constituir apenas salvaguarda de obras, valores e livros que pertencem ao público, ao meu país, ao pouso que eu gastei e me gastou".

Já o gaúcho Caio Fernando Abreu deixou um testamento dividindo seus escritos em três partes distribuídas aos amigos Luciano Alabarse, Marcos Breda e, a parcela mais pessoal, como diários, a familiares. Além disso, publicou no jornal O Estado de S. Paulo as três chamadas “Cartas para além dos muros”, onde explicita suas impressões durante a internação para tratamento contra o vírus HIV, com a percepção da morte próxima, ocorrida em 25 de fevereiro de 1996.

“Minha única preocupação é conseguir escrever estas palavras – e elas doem, uma por uma – para depois passá-las, disfarçando, para o bolso de um desses [visitantes] que costumam vir no meio da tarde” e “que são doces, com suas maçãs, suas revistas. Acho que serão capazes de levar esta carta até depois dos muros que vejo a separar as grades de onde estou daquelas construções brancas, frias”. “Tenho medo é desses outros que querem abrir minhas veias. Talvez não sejam maus, talvez eu apenas não tenha compreendido ainda a maneira como eles são, a maneira como tudo é ou tornou-se, inclusive eu mesmo, depois da imensa Turvação. A única coisa que posso fazer é escrever – essa é a certeza que te envio, se conseguir passar esta carta para além dos muros. Escuta bem, vou repetir no teu ouvido, muitas vezes: a única coisa que posso fazer é escrever, a única coisa que posso fazer é escrever”.

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